Perder-te foi o início de me perder a mim mesma,
E acho que estava bem com isso,
Porque não sabia se te podia voltar a encontrar,
Mas tinha a certeza de que ia lutar por me encontrar.
Escrevi esta estrofe no verão. Tenho plena consciência de que foi para o meu ex. Mas, agora, olhando para trás, pode relacionar-se com tudo o que aconteceu.
Durante algum tempo, mesmo depois do término da relação, tive realmente medo de deixar totalmente para trás a relação em si, a pessoa, os planos feitos e os sonhos escritos. Não me conhecia sem aquela relação. Não acho que isso seja tóxico nem mau — quando estamos numa relação longa é normal e saudável que as vidas se interliguem, que nos tornemos mais como a pessoa com quem estamos, até mesmo que encontremos nessa pessoa paz e calma. Isto é muito saudável — afinal, temos ali a nossa pessoa mais próxima. Eu tinha medo de largar tudo e perder a oportunidade de voltar. Era, no fundo, o que mais me assustava.
Com a separação e divórcio dos meus pais, perdi aquela realidade que tomava como base desde pequena — todos os altos e baixos, bons e maus — foi assustador. Acho que, como seres humanos, apesar de a situação em que estamos ser má e de não estarmos bem nela, parece muitas vezes mais confortável, mais fácil, ficarmos pelo que já conhecemos, conformados com a realidade que temos, sem tirar nem pôr. No entanto, isso também me fez lutar por uma Rebeca nova — e pela Rebeca mais nova.
A morte — que não foi repentina, afinal o meu avô já tinha 96 anos e eram várias viagens entre o hospital e o lar — foi a gota de água nesse processo de perda. O luto da morte transformou tudo o resto em algo mínimo. Eu não conseguia lidar com os vários níveis de luto que estava a passar — de perda, de transformação, de mudanças nos relacionamentos, entre outros.
A minha vida, naquela noite em que a notícia chegou por uma simples mensagem de texto, no meu pequeno quarto estilo sótão que refletia completa e exatamente como eu me sentia, foi rodeada totalmente por luto. Tudo o resto sucumbiu ao ar. Eu estava a tentar lutar por mim durante todo o processo, mas naquele momento só estava a lutar por ar. Entrei em pânico e fiquei em pânico durante muito, muito tempo. Não chorei a morte do meu avô, não chorei no funeral, não chorei as dores, não chorei o divórcio. Durante meses, não larguei uma lágrima. Sentia que precisava de ser forte por todos aqueles à minha volta; chorar mostraria a mim própria que estava a ser fraca — não sei exatamente ainda porquê, afinal chorar sempre me tinha ajudado, mas tenho dúvidas quanto à razão inconsciente.
A primeira vez que chorei a sério depois de tudo foi no jantar de despedida, quando me mudei. Tinha largado umas lágrimas no meu aniversário, a agradecer aos meus amigos por lá estarem — muito emocionada, já a pensar que ia levar algum tempo até rever algumas das pessoas, sendo que havia malta que nem sabia ainda que eu me ia mudar em menos de um mês. Mas, no jantar de despedida, ver a maior parte das pessoas que me tinham carregado naquele ano, todas juntas e todas felizes pela minha nova jornada, deu-me finalmente a vulnerabilidade de chorar. Chorei de despedida, chorei quando abracei os meus tios do coração, a minha melhor amiga que tinha carregado tanto por mim, a amiga que me tinha dado dos melhores conselhos de sempre durante aqueles meses — conselhos, mana E que tenho escritos até hoje em cadernos, folhas soltas, guardados para quando preciso de um incentivo. Chorei pela bebé de uma amiga que, sem saber de nada, me tinha dado tanta fé e que agora eu não ia ver crescer de perto. Chorei também por amizades que estavam ainda pequeninas e com tanto potencial para crescer.
Chorei quando abri a caixa que todos tinham feito com prendinhas e cartas — aquelas pessoas conheciam-me tão bem que tinham colocado em palavras, o melhor presente que qualquer pessoa me pode dar, tudo aquilo que desejavam para mim. Na manhã seguinte, depois de uma direta, fui fazer mais quatro tatuagens — uma delas uma homenagem aos meus avós, e uma delas uma borboleta. No dia seguinte, eu ia voar. Voar e crescer.
Perder o meu melhor amigo e primeiro amor, perder os meus pais e perder o meu avô significou perder-me a mim. Já não sabia quem eu era. No entanto, as pessoas à minha volta conheciam-me o suficiente para me carregarem até ali, relembrarem-me quem eu era e darem-me asas para melhorar. Deram-me liberdade para viver o meu luto e deram-me luz ao fundo do túnel — foi naquela noite que eu a encontrei.
Não chorei a sair do Algarve, não tive aquela despedida de filme a olhar pela janela do comboio e a ver a minha terra a desaparecer aos poucos — e não foi porque o futuro era melhor. Chorei, depois de um dia de viagem e arrumações, quando, no meu novo quarto ainda vazio, coloquei as prendas em cima da secretária e as cartas em cima da cama. E, num silêncio novo e desconhecido, num quarto que não tinha vestígios de vida — nem da passada, nem do presente — abri cada carta e li cada palavra. Parei tantas vezes, mas chorei muito.
Depois disso, voltei a ficar apática. Sou grata por não me ter entregue a outras coisas para me fazer sentir algo. A verdade é que o “apática” a que me refiro é a confusão completa de tanto que nos faz ficar parados — senti-me paralisada. É a sensação de sentir tanto e não sentir nada ao mesmo tempo. A esta sensação dei um semi-nome, que rapidamente se tornou algo pelo qual fiquei conhecida — exaurida. Tornou-se tão fácil estar sempre esgotada com tudo e todos. Só tinha paciência para as coisas que me conseguiam tirar daquele turbilhão de tanto e tão pouco.
E tornou-se fácil conformar-me com isso e tornar o trabalho o centro da minha vida. E, entretanto, sem saber como e sem me aperceber, tinha perdido a razão da mudança, a vontade de lutar por mim e pela minha vida. Tornou-se fácil construir distrações na minha vida para não lidar com mais nada.
Mas este é apenas o início do processo.
No fundo, a cada dia fui sempre lutando um pouco por mim — ao dar-me liberdade para ir sentindo e lidando com cada memória, cada sentimento avassalador, quando tinha de tomar decisões e tentava não decidir simplesmente o mais fácil, ao descobrir o problema de amor-próprio. A cada dia, fui tomando posse de cada aspeto e continuei a lutar por mim. Alguns dias isso significava apenas 1%, outros dias mais — é certo que nenhum dia foi 100%. Ainda assim, tudo isto levou-me a cada dia a tomar decisões que me vão dando paz, tal como a decisão de vir para Aveiro me deu.
E digo-vos que já lidei com situações de maneira que nunca achei que iria lidar, dando-me o respeito e a calma que mereço. Houve dias em que realmente não acreditava no que fazia e dizia para meu próprio bem. Parece-me irreal só agora o fazer, mas está tudo bem com isso. Não consigo alterar o passado, lutar por respeito ou dar mais calma, mas agora consigo fazê-lo — e posso continuar a fazê-lo.
Quero referir também que, no meio das perdas, estava a perda do meu trabalho de sonho. No entanto, a minha carreira, no meio de tanta confusão e atribulações, era o menor dos meus problemas — daí não ter aqui tanto peso. Foi algo que me custou. Ficar sem aquele trabalho foi como se me tirassem o tapete no meio de tudo; parecia que aquilo é que tinha despertado tudo o resto. Foi a perda que ficou para lidar por último. Ainda assim, foi a que acabei por lidar mais rápido. Eu sabia — e sei — o que quero fazer, os conhecimentos e experiência que tenho, o potencial que carrego. Ter perdido o meu trabalho e não conseguir encontrar outro não era algo que mexia com a maneira como me via. Porque, no final do dia, não somos a nossa carreira nem o nosso título. Somos pessoas que carregam dores, luto, muita falta de paz, muita falta do mais básico — felicidade.
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